Entrevista: Daniel Gaggini - O Tarantino de Heliópolis



Daniel Gaggini é ator, diretor, cineasta e responsável por levar a cultura Tarantinesca para o bairro de Heliópolis, não entendeu?  Simples, ele é o diretor de Vira-Latas de Aluguel, uma peça teatral inspirada no primeiro filme de Tarantino como diretor, Cães de Aluguel.
O Vira-Latas de Aluguel é um projeto de capacitação teatral, que inclui oficinas, estudos e preparação de elenco. Foram selecionados participantes de várias regiões da capital paulista, como Caieiras, Guarulhos, Guaianazes, São Caetano do Sul, Itaquera, entre outras, porém, todos deveriam ter uma ligação com a comunidade de Heliópolis. Destas oficinas, 16 atores foram escolhidos e passaram por um processo colaborativo para a montagem da peça. Ao final, dez foram selecionados para a montagem, que deve estrear em 18 de outubro, no bairro, com entrada gratuita.
Gaggini também é curador e produtor do Cine Favela, que exibe filmes gratuitos na comunidade.
Veja aqui minha conversa com ele:
Vinicius: Como surgiu a ideia de montar a peça?

Daniel: Em 1993, quando estava na Europa, vi o filme Cães de Aluguel e fiquei impressionado. Logo pensei que deveria fazer uma peça teatral daquilo, mas acho que no teatro é imprescindível que se tenha algo a dizer com um espetáculo, o que não tinha naquela época.
Qual foi o critério utilizado na escolha do filme Cães de Aluguel e não outro filme do Tarantino?
Na convivência com a comunidade, nós fazíamos sessões de cinema para os moradores, e decidimos passar filmes clássicos, desde E o Vento Levou, Chaplin, só para eles terem uma noção da história cinematográfica. Como gostava muito do Cães de Aluguel, acabei exibindo o filme, e a minha surpresa é que todos ficaram pirados com ele. O maior impulso foi esse, eles queriam rodar um curta e eu disse que não, que faríamos a peça, uma outra história.
E de onde surgiu essa identificação dos moradores com o filme?
Acho que na verdade foi aquele negócio de bandido e mocinho. Eles quiseram contar uma história. Quem nunca brincou disso quando criança?
O filme Cães de Aluguel é muito americanizado e estereotipado. Como foi o processo de adaptação para a cultura brasileira?
É importante deixar claro que a peça não é baseada no filme, mas inspirada nele. Então pegamos a sinopse, o mote da história - Um grupo de ladrões vai fazer um assalto, que dá errado e tem um traidor entre eles - Então, pegamos o esqueleto da trama, e em cima disso nós começamos a desenvolver improvisações. A gente ficou dois meses improvisando esse mote, sempre tendo a preocupação de trazer para as cores da comunidade do Heliópolis, é bom deixar registrado que todos os personagens são daqui, então, em cima dessas improvisações, nós construímos um roteiro genuíno, usando o filme apenas como ponto de partida.

E como foi o critério de escolha dos atores?
De 115, 32 foram capacitados, depois 16 foram escolhidos para escrever o texto e agora estamos com 10. O que determinou foi mesmo o talento e o perfil de cada personagem, que eles mesmos construíram e defenderam. Quem defendeu melhor, ficou no elenco. De todos os que fizeram as inscrições, acredito que nós conseguimos montar o elenco desejado. Inclusive temos uma integrante que não passou nem para os 16, mas eu vi nela um interesse e uma vontade no fazer teatral que decidi colocá-la como minha assistente de direção, e ela tem sido fundamental no processo.
O filme tem alguns momentos de violência explícita, algo característico nos filmes do Tarantino. Como vocês fizeram para adaptar essas cenas para o teatro, a exemplo da cena da tortura, que é bem impactante...

Nós temos a cena, mas é totalmente autêntica e criada por um ator.Todos os 16 atores criaram uma cena de tortura, e dentre todas elas, nós selecionamos uma em que o torturador ama música erudita, dança ballet, é um exímio lutador de Kung-Fu e diferente do filme, ele tem um carinho pelo torturado. Nós ainda não construímos, mas é uma cena muito bonita e ao mesmo tempo impactante.

A violência do filme tá na peça,  é impossível evitar.Temos um homem que levou um tiro, que sangra durante o espetáculo inteiro e por mais que tivéssemos cuidado por conta de patrocínio, foi impossível não assumir a violência, mas a peça também tem o humor e outros elementos. Se você quer usar Cães de Aluguel como ponto de partida e não quer ver violência, não dá.  E não estamos falando de uma comunidade, nós vivemos numa sociedade violenta.

E qual é a repercussão do projeto na comunidade?

A ideia sempre foi integrar a comunidade o máximo possível. Nós vamos fazer de várias maneiras: O público será transportado de um ponto até dentro de Heliópolis, e a companhia de van é da comunidade, o espetáculo começa fora do salão, então temos uma cena dentro de um boteco do bairro, nós conseguimos gerar renda para o comércio. E tem sido muito bom para todos, porque o Heliópolis tem aquela coisa de literalmente ser uma comunidade onde todo mundo se ajuda. Quando você chega, o cara te oferece um cafezinho, a igreja cede o espaço para guardar o cenário. Estamos integrando toda a comunidade dentro do projeto e gerando renda local.

Em sua opinião, o que isso agrega na comunidade?
É tirar o preconceito. O Heliópolis não é uma favela, é um bairro com 200 mil habitantes, um milhão de metros quadrados, maior do que muita cidade e um comercio muito forte. Quem mora em Heliópolis não precisa sair para nada. Tem o Instituto Bacarelli com foco na música erudita, o CineFavela, que apresenta sessões regulares de cinema aos domingos, e quem consome é o próprio morador. Daqui surgiu o maior festival de cinema periférico do mundo, que é o Festival Cine Favela, onde recebemos  mais de 400 filmes do mundo todo para serem exibidos e hoje já está em sete comunidades.
É fundamental você desenvolver projetos e trazer pessoas, por isso colocamos o transporte gratuito. Nós facilitamos a vida do espectador que quer vir, mas não sabe onde deixar o carro, por exemplo. Ele vem pra cá, vê que é um lugar legal, que dá pra comer um peixe frito com baião de dois depois da peça, tomar uma cerveja, que é mentira que tem tiro para todos os lados, etc. É desmistificar o conceito de comunidade. As pessoas vivem aqui, porque talvez não tiveram uma oportunidade de ir para outro lugar, mas principalmente porque elas gostam daqui. Heliópolis é um bairro caro, e a função da arte é justamente desmistificar essa ideia de favela, bandidagem. Só fala isso quem não conhece.

Qual foi a maior dificuldade no processo?
Dificuldade de verdade não teve. Nós colocamos o projeto numa lei chamada ProAC – ICMS, e em um mês nós conseguimos captar recursos pelo Instituto PEPSICO, sendo que às vezes demora cerca de dois anos para conseguir. A grande dificuldade foi pelo fato de ser algo incentivado, que tudo depende de nota fiscal, pagar com cheques, e como o comercio é algo informal, eu não consigo ter nota fiscal e tenho que comprar fora da comunidade onde eu possa pagar com cheques. Acho que os atores tiveram mais dificuldade, porque alguns são de Guarulhos, Guaianazes, Capão Redondo, então tem gente que sai daqui às 23h depois do ensaio e chega às 2h da manhã em casa. Quanto às dificuldades de realização, vamos esperar o espetáculo começar a ser feito na rua para ver se vai dar problema, mas por enquanto, não tivemos.
Então não há o objetivo de passar a peça para um teatro de verdade?
A peça não tem o menor sentido de ser realizada fora.  Se a peça vai ser boa ou ruim, não importa, o resultado é todo o processo que começou em dezembro do ano passado e vai até fevereiro de 2014. A gente quer fazer festivais, levar o espetáculo para outros lugares, mas não sabemos se isso vai descaracterizar ou não. Em primeiro momento o espetáculo começa aqui, depois nós vamos pensar.
Como funcionou o processo criativo, ele foi totalmente colaborativo, não?
Sim, eu acredito que a arte só se faz por meio da coletividade. É estupidez você impor, principalmente para pessoal que temos aqui, alguns experientes, outros nem tanto. Eu como diretor, me coloco como um condutor, então eu os conduzo para a criação do texto e dos personagens. A partir das improvisações, nós criamos uma comissão de dramaturgia, onde cinco pessoas vão colocar isso no papel. Depois, o texto passou por diversas leituras. Eles participaram de todas as etapas, agora é um processo em que eles participam obviamente como atores, então eles nos propõem marcações, cenas, e cabe a nós – eu e uma equipe –­ fazer esse filtro e ver o que interessa e o que não interessa.

Meus agradecimentos ao Daniel Gaggini pela entrevista.
Caso queiram conhecer mais do projeto, entre no site http://viralatasdealuguel.com e no Facebook https://www.facebook.com/viralatasdealuguel

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